
Falarei agora deste génio realizador. Dos 5 melhores filmes que visionei aqui do céu, 3 deles são, invariavelmente, criação da minha criação: Iñárritu de seu nome.
Mas antes, quero lembrar porque um dia criei a famosa Torre de Babel. Foi construída por mim na antiguidade, com o objectivo dos meus fiéis súbditos alcançarem o céu. Ao chegarem a uma altura considerável, resolvi destruír a Torre, e quando os homens caíram por terra, pú-los a falar línguas diferentes, para que desta forma ficassem impossibilitados de comunicar uns com os outros. Sim, é mais difícil atingirem-me dessa forma.
Falando no filme muito bem engendrado pelo meu querido Alejandro... Deixei-me subir aqui ao trono e falar-vos.
Ora bem:
Babel foi a muito aguardada, aí no planeta Terra, terceira longa-metragem do realizador mexicano Alejandro González Iñárritu, responsável pelo perturbador Amor Cão e pelo bem sucedido 21 Gramas. Comum a ambos os filmes – e também a Babel – é a estrutura em “filme-mosaico”, com várias histórias que se entrecruzam devido a um dado acontecimento.
Neste caso, o ponto que une as várias vidas é o disparo acidental de uma bala. Como essa bala se relaciona com as várias personagens do filme é algo que vai sendo descoberto a pouco e pouco, e não farei aqui qualquer género de revelação quanto a isso. Mas se a ligação de um acto a várias vidas é por si só fascinante, Babel deve ser entendido numa dimensão muito maior – a de um retrato quotidiano de várias culturas, breve mas admiravelmente pintadas por González Iñárritu com respeito e sensibilidade.
Tal como os filmes anteriores, há três vectores da história, o que equivale sensivelmente a três localizações. Marrocos, onde se encontra um casal de americanos de férias, onde vive a família de pastores e onde sucede o tiro que catalisa toda a acção (só aqui há pelo menos duas histórias). O México, onde a ama dos filhos dos americanos vai assistir ao casamento do filho, levando os meninos consigo porque não tem com quem os deixar. E o Japão, mais precisamente Tóquio, onde se desenrola essencialmente a história de uma rapariga surda-muda e do seu pai, cuja ligação à trama será percebida a meio da película. Em qualquer dos locais onde se desenrola a acção, a língua falada é a do sítio, ou do meio (no caso dos turistas, o inglês ou francês, apesar de se encontrarem no estrangeiro). A questão dos idiomas é de capital importância para o filme, já que será nessa noção de dificuldades de comunicação que reside a essência da obra – a tal evocação da Babel bíblica e do castigo divino de confundir os povos através da linguagem. Esse problema de “lost in translation” está exemplarmente patente na cena em que Richard, o turista americano, tenta falar com o médico marroquino acerca do estado da sua mulher por intermédio do guia intérprete, apercebendo-se o espectador através da legendagem as óbvias dificuldades de transmissão de ideias.
Quererá González Iñarritu evidenciar o contributo da globalização humana para essa incomunicabilidade?
Creio que a sua intenção será mais a de, subtilmente, transmitir uma mensagem de tolerância através da expressão da dor em situações extremas (o tiro, o deserto da fronteira, a falta de amor). O filme chama a atenção para algumas questões contemporaneamente relevantes, quase todas cimentadas na ideia de medo: o medo da imigração ilegal na fronteira entre os EUA e o México, o pânico do terrorismo, os preconceitos ocidentais (a questão do gelo, a reacção dos outros turistas perante a retenção do autocarro). Mas não é olvidada uma dimensão mais íntima, dada pela relação do casal de turistas ou pela maneira de lidar com a sexualidade, nomeadamente através da questão da nudez, bem explorada na história do menino marroquino que espia a irmã e na procura desesperada de contacto físico de Chieko. Gostaria de me reter precisamente no caso da jovem japonesa, pois a sua história é a meu ver a mais impressionante de todo o filme. Chieko não ouve e não fala (sei que eu, como Deus, não devia fazer humanos assim). Ao longo de todo o filme vai sofrendo progressivos abandonos. A mãe matou-se. Os rapazes do restaurante desprezam-na (“olham-nos como se fossemos monstros”, diz a uma amiga), o dentista expulsa-a e até o rapaz da discoteca (sendo que as cenas no seu interior e esta rejeição em particular atingem uma força particular) a troca pela amiga que consegue falar. Chieko passa todo o filme em busca de contacto físico, que provoca das maneiras mais brutais. A sua nudez de corpo incomoda menos que a sua nudez de alma – despojada de sentido e de amor-próprio, à mercê de todas as rejeições só porque não tem a capacidade de se dar pela palavra. Será assim tão importante o facto de Chieko ser surda-muda? Ou não estará a vida pejada de situações que em que a falta de comunicação e a necessidade desesperada de amor conduz à completa anulação de pudores numa perturbadora procura por sentir algo que não um vazio emocional? Talvez pela sua violência desarmante, a história de Chieko – que fecha o filme de maneira irrepreensível – seja a que mais incomoda.
Mas retornemos ao quadro geral.
Em Babel o espectador é seduzido por imagens de beleza inenarrável, um olhar admirado pelo mundo (o das montanhas norte-africanas, o da movimentada vida mexicana, o da noite de Tóquio…). A fotografia a cargo do génio de Rodrigo Prieto é pois de assombrosa magnitude. A música de Gustavo Santaolalla, mais uma vez autor de uma partitura de incisiva pulcritude, transporta-nos para dentro do ecrã, fazendo-nos sentir cada plano como humanos que somos, na nossa dimensão de cidadãos do mundo.
Mas também dos seus actores vive o filme. Apesar de os cabeças de cartaz serem Brad Pitt e Cate Blanchett, quem brilha com mais fulgor são Adriana Bazzara, como Amelia, a ama das crianças (o seu corpo desitratado correndo pelo deserto de vestido vermelho em busca de ajuda é uma das imagens mais fortes), e Rinko Kikuchi como Chieko, numa interpretação perturbadoramente realista digna de prémio. Kôji Yakusho mantém num registo calmo mas tocante o papel do pai de Chieko e Gael García Bernal tem um pequeno papel como Santiago, o sobrinho de Amelia, e desempenha-o com a garra que lhe conhecemos.
Menção ainda para todos os actores secundários e figurantes, sem os quais Babel não teria a dimensão elevada que tem, em escala e em qualidade. Poderoso filme este de González Iñárritu e Guillermo Arriaga (sim, porque acredito que o filme seja tanto do maestro realizador como do fabuloso argumentista). Estreado no final deste ano, constitui uma das propostas mais totais do mesmo. O júri de Cannes não estava equivocado quando lhe atribuiu o galardão para melhor realização. É verdade que Babel teve perfil para filme de prémios. Mas não é menos verdade que bem os merecia.
Numa palavra: Imprescindível.